O jornal Gaia Semanário esteve à conversa com Manuel Mota, um português que participou em duas missões humanitárias, na fonteira da Polónia com a Ucrânia, e que esteve em Kiev, recentemente.
Mais de 47.000 mortos, 13.000 feridos, 400 pessoas desaparecidas e mais de 15 milhões de deslocados, na sua maioria crianças, são a imagem atual do gigantesco drama que se vive na Ucrânia, após a invasão da Rússia, em fevereiro deste ano. 17 dias depois, a 13 de março, partia, de Barcelos, rumo à fronteira da Polónia com a Ucrânia, uma missão humanitária com o objetivo de levar alimentos e medicamentos e trazer refugiados. A coordenar o grupo de voluntários, uma cara conhecida, Manuel Mota, ex-deputado à Assembleia da República e atual líder da bancada do PS, na Assembleia Municipal de Barcelos, para além de investigador e empreendedor.
Numa altura em que a guerra na Ucrânia não dá sinais de abrandar, quisemos dar a conhecer a visão de quem esteve em território ucraniano e viveu diretamente o maior drama da Europa do século XXI.
As imagens diárias, que nos chegam da Ucrânia, apresentam-nos um cenário de destruição e morte como nunca tínhamos visto na Europa, neste século. O que o levou a envolver-se no esforço de ajuda ao povo ucraniano?
Em tudo o que faço na vida, costumo colocar a questão de outra perspetiva: o que é que me impede de ajudar? É sempre a reflexão que faço. Seja um pedido de ajuda ou um problema em que eu próprio posso ajudar. É assim desde que tenho consciência própria, e não poderia deixar de ser nesta situação tão dramática.
Daí até partir rumo à fronteira da Polónia com a Ucrânia foi um pequeno passo.
Logo nos primeiros dias da guerra, disponibilizei-me a várias instituições em que, habitualmente, dou contributo e a algumas pessoas conhecidas, que se percebia estarem já envolvidas em ações humanitárias e foi uma delas que me sugeriu ir a uma reunião onde estavam a organizar uma ida à Polónia para levar bens e medicamentos e trazer o maior número de refugiados possível. Percebi que poderia ajudar de forma significativa, sendo que a partida estava marcada para 4 dias depois.
O que é que mais o marcou nesta experiência? Não teve medo?
Apesar do receio, percebia a importância do envolvimento num momento tão dramático, particularmente para as crianças e as suas mães, senti que tinha todas as condições para partir. O medo é substituído pelo sentido de missão. Na verdade, durante essas 6 semanas e mesmo em território ucraniano, o único pensamento era o de ajudar. E é nesse processo que ficam as marcas mais fortes, que são os rostos concretos de crianças e mães, mas também dos idosos, com quem estive em Irpin, na periferia de Kiev, e que sobrevivem ao do que de mais horrendo podemos imaginar.
Mas as duas experiências foram bastante diferentes.
Já durante a segunda missão, no mês de Abril, a organização tinha uma estrutura e dimensão incomensuravelmente maior. Se na primeira missão trouxemos 23 refugiados, na segunda, foram mais de 2.000 os refugiados que passaram pelo Centro de Acolhimento Temporário e mais de 1 milhão de euros de alimentos e medicamentos enviados pelo Centro Logístico para instituições que se mantêm a ajudar o povo ucraniano no seu próprio território.
Quais são as imagens fortes que lhe ficaram desses meses?
Há uma fotografia extraordinária, tirada pelo Martin Linza, que sintetiza quase tudo. Algumas centenas de crianças órfãs tinham acabado de chegar ao nosso Centro de Acolhimento Temporário e uma delas chorava intensamente. Tinham estado numa zona sobre bombardeamentos constantes e tinham viajado vários dias, em muito más condições, até chegaram à Polónia. Uma das outras crianças passa-lhe a mão pelo rosto de forma a consolá-la. Aquela é uma imagem mágica do poder da solidariedade. Independentemente das dificuldades de cada um, estávamos todos unidos na missão de tornar aqueles tempos em tempos um pouco melhores. E essa imagem repetiu-se várias vezes, porque diariamente chegam refugiados; diariamente tínhamos notícias de famílias que ficavam sem pai e marido; diariamente olhávamos para crianças e mães que perderam tudo e não faziam a mínima ideia de como seria o seu futuro; diariamente éramos confrontados pelos motoristas, a quem enchíamos os camiões com bens e medicamentos, com relatos de morte, destruição, angústia, mas sempre com uma enorme esperança e agradecimento a quem os ajudava.
Como era o seu dia-a-dia na instituição?
Quando a Anna Wójtowicz, que conheci na primeira missão, me contactou a dizer que passada a primeira fase da guerra havia uma certa desmobilização do apoio humanitário na fronteira, coordenado pela Caritas Europa, e que necessitavam de alguém com o meu perfil, que pudesse, também, ajudar, com contactos institucionais, preparei-me para as piores condições. Mas, na verdade, a falta do conforto habitual não foi sequer relevante, já que as tarefas eram muitas e o menos importante era se tínhamos uma casa de banho coletiva ou se a comida era muito diferente daquela a que estamos habituados.
Era um cenário de guerra, com centenas de crianças, mães e idosos a dormir em colchões no chão. Cada um daqueles rostos que connosco se cruzavam e com quem muitas vezes falei, com a ajuda do Google Translate ou em inglês ou, ainda, como no caso do Volodymyr, que trabalhou vários anos no Algarve, em português, tornava irrelevante as nossas condições, que naquele contexto até nem eram nada más. As cortinas não eram necessárias, porque acordava muito cedo. Se fosse necessário ficar a coordenar a receção, durante a madrugada, tinha a preciosa colaboração do Ben Whedon, jornalista norte-americano que, com a diferença horária, trabalhava até às cinco horas da manhã, o que me permitia dormir até às quatro e meia. Quando chegavam refugiados de forma programada, habitualmente transportados pela Proteção Civil polaca, a estrutura estava toda organizada e rapidamente era tratada a documentação, a alimentação e o local para dormirem, e posteriormente tratávamos de os encaminhar para um país de acolhimento. Depois havia o trabalho no Centro Logístico, onde eram rececionadas e tratadas toneladas de bens, alimentos e medicamentos e encaminhados para território ucraniano. Por vezes, faltam medicamentos ou materiais médicos e ajudávamos também na aquisição, um pouco por todo o mundo. Recordo, em particular, a necessidade de torniquetes médicos para uso em situações muito graves e que, com a ajuda da minha família e amigos, conseguimos receber alguns de Portugal e adquirir um pouco por todo o mundo.
Chegou a ir a território ucraniano. Não temeu pela sua vida? Como está o país?
No final do mês de abril, o número de refugiados que atravessavam a fronteira era muito menor, e era necessário perceber no terreno de que forma se deveriam redefinir as prioridades, bem como transportar ajuda humanitária. As informações que tínhamos eram de que até Kiev não havia tropas russas e de que era relativamente seguro efetuar a viagem, até às principais instituições para as quais diariamente enviávamos bens, alimentos e medicamentos. Quando se colocou a questão de ir a Kiev, a minha reação foi a mesma de sempre: disponibilidade total para ajudar. Senti que, apesar do risco de ir para um país em guerra, as circunstâncias em que o faríamos garantia alguma segurança. Ao passar a fronteira, a diferença de estruturas entre a Polónia e a Ucrânia provocou-me alguma preocupação acrescida, mas admito que estava mais preocupado com o que a minha família e amigos sentiam, do que com o que estava a sentir no momento (porque o cenário televisivo era dantesco). As zonas que visitámos nos primeiros dias não tinham sido bombardeadas e estavam apenas sobre forte controlo militar ucraniano. Mas quando chegamos a Irpin, na região de Kiev, o cenário de destruição era dantesco. Zonas residenciais completamente destruídas, carros civis queimados e baleados, veículos militares destruídos e a população que contactamos ou era de instituições humanitárias ou idosos que ficaram por não terem condições, nem vontade de “morrer” noutro local. Lá, percebemos a importância de muito do que fazíamos em território polaco. Bens, alimentação e medicamentos eram de facto entregues a idosos com graves dificuldades de locomoção e doentes. Esses momentos colocam-nos no limite da fragilidade da nossa condição. Ouvir uma senhora de 82 anos dizer-nos que o cadáver do marido, morto por um rocket que destruiu parte daquela casa, estava “ali” no jardim da casa, porque ainda não tinha havido condições para o retirar e ela mantém-se ali, num cenário de destruição, guerra, ausência de água e luz e a depender da comida e medicamentos, que diariamente vão chegando da ajuda humanitária… um cenário multiplicado por todos os locais que o nosso olhar alcançava, porque o cenário é de destruição total!
Nesse cenário, como é que se controlam as emoções? Ainda existiam bombardeamentos? Qual era o ponto de situação em termos militares?
Com humildade. Tudo o que sentimos é muito pequeno, comparado com aquelas pessoas que perderam bens e familiares ou que desconhecem o paradeiro de familiares e amigos e não fazem ideia de como será o dia de amanhã. Há momentos em que reconfortar os outros é o melhor que podemos fazer por nós próprios. É claro que as lágrimas se apoderaram, mais do que uma vez, e que tive de virar a cara, para que ninguém reparasse, e respirar fundo… Para qualquer lado que olhássemos ou com qualquer pessoa com quem falássemos o cenário só piorava… estivemos em Irpin, na segunda-feira de comemoração da Páscoa Ortodoxa, na mesma semana em que o Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, visitou Kiev. Na altura, os bombardeamentos eram cirúrgicos. Assistimos aos primeiros dias da tentativa de reconstrução e estivemos num dos edifícios de apoio humanitário, que estava completamente destruído, a analisar de que forma se poderia ajudar com a reconstrução. No edifício principal, que funcionou durante o período da presença militar russa e onde se mantiveram sempre alguns voluntários, é difícil perceber como é que eles se mantiveram vivos.
Perante tudo isto o que sentimos é, mais uma vez, a tristeza por haver, ainda nos dias de hoje, quem fomente a guerra, a morte e o sofrimento de inocentes. Foram vários os relatos de ucranianos, com familiares no exército russo, que também não queriam participar nesta guerra. E não deixo de pensar na incapacidade que o mundo continua a ter para combater todo o tipo de guerras, fome e vários tipos de sofrimento evitável. Há várias guerras e até tipos de guerras para as quais deveremos estar atentos e lutar para que terminem ou não aconteçam. Só isso fará de nós verdadeiramente humanos.
Percebe-se que muito mais haveria para contar e questionar, mas teremos de terminar esta entrevista. Como acha que acabará esta guerra?
Inevitavelmente com cedências de ambas as partes, o que espero que aconteça o mais rápido possível, para acabar com tanto sofrimento. Enquanto isso não acontecer, o clima de guerra irá manter-se. No entanto, possíveis alterações na governação na Rússia poderão antecipar esse cenário. É notória a insatisfação da elite russa em relação ao conflito, já que os seus interesses económicos estão postos em causa e isso pode precipitar a “saída” de Putin.
Que mensagem final gostaria de deixar aos nossos leitores?
É fundamental que a comunidade internacional e cada um de nós, em particular, sejam promotores da paz. No caso concreto deste conflito, há muitos portugueses a ajudar as famílias refugiadas e a apoiar humanitariamente o povo ucraniano. Que este exemplo seja seguido, por mais e para todos os tipos de conflitos. Uma sociedade solidaria é uma sociedade consciente do “outro” como prolongamento de cada um de nós. Ter essa noção acaba por ter um efeito multiplicador e por trazer benefícios a todos. Ser solidário, nos contextos mais adversos, mas também nos do dia-a-dia, faz-nos seres humanos mais realizados e felizes. Nesse sentido, sejamos todos exemplo e seremos todos mais felizes!