Há uns tempos um governo da nossa república procurou desenvolver a sua ação política suportada num conjunto de opostos que, supostamente, se deveriam odiar. A peste grisalha era uma das expressões usadas por meninos liberais, sem memória e sem respeito pelo outro, como se a vida se reduzisse ao eu.
Egoístas e ignorantes chegavam a sugerir que não tínhamos nada que pagar as pensões de quem se sacrificou uma vida inteira para construir um país melhor, para dar um futuro aos mais jovens, em última análise até a esses liberais das redes sociais.
A dimensão de serviço público da nossa administração, nas suas diversas funções, era outro do problema. E a tese era simples: há funcionários públicos a mais, que, ainda por cima, são uns malandros e só dão despesa.
Para início de conversa, deixo-lhe uma reflexão: quais são para si os países da Europa onde se vive melhor?
Se eu tivesse que responder, diria os países nórdicos, isto sem pensar muito. Pois bem, Portugal tem 14% de funcionários públicos, segundo dados do Eurostat.
A Suécia tem 29%, a Dinamarca 28% e a Finlândia 24%.
Outro dos mitos: em Portugal pagam-se muitos impostos.
Os dados são novamente da União Europeia: a Dinamarca e a Suécia estão acima dos 40% do PIB e a Finlândia acima dos 30. Portugal fica-se pelos 24,3% do PIB.
Creio que estes dois exemplos servem para mostrar que há uma distância enorme entre os factos e a realidade que nos mostram. A narrativa das redes sociais e das notícias que nos mostram a toda a hora são bem diferentes do que nos dizem os números oficiais.
Perante esta realidade, seria mais avisado olhar para os rodapés das notícias com mais atenção, procurar ler mais, ir mais fundo na reflexão sobre cada uma das notícias que nos vão apresentando.
Olhando para os recentes casos judiciais que envolveram membros do governo não consigo deixar de questionar algumas das ações da Justiça.
Não sendo um especialista na Constituição reconheço no seu artigo segundo a expressão “na separação e interdependência de poderes”. Creio que a frase de António Costa traduz esta ideia de forma simples: à justiça o que é da justiça, à política o que é da política.
Pode parecer uma frase gasta e vazia de conteúdo, mas é uma ideia que deveria ser sagrada: a política não interfere na justiça, que deve ser integralmente independente do poder executivo. Esta separação de poderes exige-se nos dois sentidos. Assim, a Justiça também não pode, em caso algum, interferir na política.
Há uns anos identificar alguém como arguido era visto como algo que acontecia apenas em casos excecionais. Hoje parece ser a regra. Investigar uma pessoa obedecia a regras muito restritas e era feito com parcimónia. Nos dias que correm, a nossa privacidade é vista como um espaço público, como se fosse normal ouvirem as nossas conversas, lerem as nossas mensagens, saberem tudo sobre as nossas vidas.
Não, não é normal! Não pode ser normal.
Como não pode ser normal que a comunicação social chegue primeiro que a polícia ou que o segredo de justiça seja uma espécie de pai natal em que só as crianças acreditam.
Esta ideia de colocar uma pessoa na prisão para investigar não pode ser normal. A capacidade que a justiça tem de prender um homem durante uma semana para depois o dispensar com uma palmadinha nas costas é inaceitável.
Não sei se António Costa, Galamba ou todos os outros nomes são ou não culpados. Se forem, devem pagar por isso, obviamente.
Mas, aqui a questão é outra – pode o sistema judicial condicionar desta forma o poder político?
Por defeito de profissão, sou especialista em avaliação, processo inerente à condição de Professor. Avaliando consigo identificar melhor o percurso pedagógico que cada um dos meus alunos necessita. E avaliar não é classificar – isso é muito mais simples. Classificar é “apenas” atribuir uma nota no final de cada período ou de cada semestre.
Sinto ter legitimidade para perguntar qual é a avaliação que a Justiça faz em cada um dos casos. Será que é realmente cega ou será que obedece a parâmetros definidos pela hierarquia judicial? Não quero acreditar que se possa mover por interesses exteriores à justiça, mesmo consciente de ela é feita por homens e por mulheres como nós.
Creio que questionar a justiça no sentido lato é um dever de todos nós. Se podemos e devemos discutir a saúde e a educação, obviamente podemos e devemos olhar para a justiça com um olhar crítico.
Exigir condições de trabalho para todos os agentes de justiça, exigir rigor e equilíbrio nas decisões judiciais num contexto de tranquilidade, sem influências exógenas.
Mas, é também um dever de cidadania colocar no espaço público a reflexão sobre a justiça e as suas decisões. Mais ainda quando ela interfere de forma recorrente na política, contrariando o espírito da constituição.
A separação de poderes é um pilar da nossa Democracia que se concretiza nos dois sentidos.
Somos todos convocados a exigir que assim seja, caso contrário estaremos a permitir o acesso ao poder de gente que vê no estado democrático uma dificuldade. A poucos “dias” de festejar abril, talvez esteja na hora de o exigir em todas as suas dimensões.