
Salvador Santos
Gestor Cultural
1. No ano passado o São João não saiu à rua! O que nunca tinha acontecido, desde que se celebra o São João, santo que diversas cidades festejam com imenso fervor, mas nenhuma com o mesmo empenho e entusiasmo das gentes das duas urbes que ladeiam o rio Douro junto à foz. A mais antiga referência que se conhece à festa de São João nestas paragens está expressa numa crónica de Fernão Lopes, do século XVI, durante o reinado de D. Fernando: “O cronista chegou ao Porto no dia em que estava a festejar-se determinado acontecimento com um entusiasmo desabrido”. Era o São João! Mais do que uma festa, o São João foi em tempos um marco na prática da cidadania, elegendo-se nesse dia os representantes do povo para uma discussão sobre os problemas da urbe. Esta tradição foi-se perdendo com o decorrer dos anos, como outras se perderam em favor de costumes importados da capital, que ainda hoje prevalecem. Os velhos rituais, construídos sobre os resquícios da festa pagã da celebração do solstício de verão, foram, no entanto, sobrevivendo quase todos, sobretudo os que estão de alguma forma ligados ao culto do sol e do fogo: ervas aromáticas (manjericão, alho-porro…), balões de ar quente, alcachofras e fogueiras, banhos e orvalhadas, cascatas sanjoaninas… e, claro, o fogo-de-artifício, que não teve origem na ribeira portuense, ao contrário do que se pensa, mas na Serra do Pilar, em Gaia. O ano passado faltaram o fogo-de-artifício, os espetáculos com artistas convidados e grandes multidões. Mas a festa não se deixou de fazer em cada lar, no seio familiar. A festa foi contida, mas o São João não faltou.
2. O que faltou mesmo o ano passado foram as Rusgas (Marchas), uma tradição que foi mudando com os tempos, contaminada pelo espírito das marchas populares que o Estado Novo inventou na capital para amolecer as vozes mais críticas do povo. Ficou, no entanto, a animação e o colorido da festa, o seu lado lúdico e popular, as apaixonadas rivalidades entre freguesias, a saudável competição entre coletividades, e, como agora se diz, o empreendedorismo associativo subjacente a esta realização que mantém o pendor popular. São meses de ensaios de cantigas e coreografias, semanas a fio de confeção de figurinos e de construção de arcos e demais elementos cenográficos, que muitas vezes, em Gaia, apenas têm por finalidade uma única noite de brilho entre o largo Luís I, as avenidas Diogo Leite e Ramos Pinto, e o largo Aljubarrota, onde tudo se decide aos olhos de um júri que tem a tarefa de escolher as melhores entre as melhores. Em cada desfile celebra-se uma manifestação cultural que importa proteger e apoiar de uma forma menos tímida. Não nos podemos escudar nas origens populares das Marchas, na autonomia do associativismo e na liberdade criativa das suas gentes para “apertar os cordões à bolsa municipal”, como se não dependesse do executivo camarário a preservação e o desenvolvimento das nossas tradições culturais. A exemplo do que acontece noutros municípios do país, compete à Câmara de Gaia dispensar de forma atempada os meios financeiros adequados ao financiamento dos diversos trabalhos a desenvolver pelas associações envolvidas na realização das Marchas, tendo em vista uma organização estável e com a necessária antecedência do evento. O que, como todos sabemos, não tem acontecido! Vamos ver o que acontece este ano com o regresso do São João?!…
3. A atual situação da pandemia da Covid-19 no nosso país e a execução do plano de vacinação em curso dão-nos alguma esperança de que este ano o São João possa mesmo sair à rua. E com ele as Rusgas (Marchas) Sanjoaninas! Porém, para a eventualidade de as autoridades de saúde continuarem a desaconselhar a realização de eventos de grandes multidões, por não termos ainda atingido os níveis de segurança de saúde pública que só a imunização de grupo parece garantir neste momento, e esta aparentemente apenas é atingível em meados de agosto, temos de estudar formas alternativas de festejar o São João e isso deve ser feito a partir de agora, o que exige a concertação de planos e meios entre as duas autarquias que ladeiam o rio. No caso do desfile e exibição das Marchas na beira-rio do centro histórico de Gaia, a solução será muito mais fácil por ser menos complexa. O que não podemos é coartar a liberdade de criação artística das gentes que todos os anos se mobilizam para realizar um dos momentos mais genuínos da nossa tradição popular a norte do país!
4. A democratização da produção e criação artística é um instrumento de motivação do cidadão no desenvolvimento da sua cidadania e participação ativa na dinâmica artística e cultural da sua cidade. E é isso que está latente no concurso de fotografia que a autarquia de Gaia decidiu promover, cujas candidaturas e obras devem ser enviadas até 31 de março, para o email fotografiagaiatodoummundo@cm-gaia.pt. As imagens a concurso devem ser inéditas e retratar a cidade de Gaia, tendo como principal contexto o momento atual vivido em todo o mundo. Com este concurso, a Câmara de Gaia diz reconhecer “a importância de envolver os cidadãos nos seus projetos culturais e artísticos, promovendo o seu sentido de comunidade, criatividade e espírito crítico”. Só é pena que o concurso se restrinja à fotografia, excluindo outras formas de expressão artística, como o desenho, a pintura, a escultura, a literatura (romance, novela, conto, poesia, crónica), a música e (até) algumas manifestações performativas. É urgente promover o desenvolvimento integrado das pessoas através das artes, condição indispensável ao exercício pleno e responsável da sua cidadania!