Salvador Santos
Gestor Cultural
1. É lamentável a ausência de uma visão estratégica e programática para o Espaço Zé da Micha! Gerido pela União de Freguesias de Santa Marinha e São Pedro da Afurada, aquela infraestrutura continua a ser uma ferida aberta no coração do centro histórico de Gaia, com sinais evidentes de degradação e sem um projeto digno do local. À falta de ideias de quem tem a responsabilidade de dar resposta a esta triste situação, aqui ficam algumas hipóteses do que se devia fazer e já podia ter sido feito: i) criação de um Centro Interpretativo da Beira-Rio, que seja um repositório dinâmico de memórias, de tradições, de hábitos culturais e de experiências vividas através da participação das gentes locais; ii) criação de um Centro Comunitário, com uma forte componente cultural, que se assuma como agente dinamizador da participação dos variados grupos sociais e etários do Lugar, tendo como pedra basilar o desenvolvimento local e social e a promoção de uma cidadania ativa e participativa; iii) criação de um verdadeiro Centro de Dia, que treine as capacidades mnésicas dos seniores, através de atividades que desenvolvam o pensamento crítico e valorize a importância do indivíduo e do coletivo, estimulando os aspetos de interajuda e de cooperação, e adotando formas de relacionamento com vista à compreensão dos benefícios da socialização. Estas são apenas três hipóteses de ideias a desenvolver no local e todas elas facilmente exequíveis.
2. O programa que venha a ser desenhado para o Espaço Zé da Micha devia ser acompanhado de um projeto arquitetónico tendente à reabilitação e revocação daquela infraestrutura, tendo em conta as suas linhas-base e o âmbito da utilização associada, já que é de acordo com o tipo de ocupação dos espaços que se estabelecem as estratégias de intervenção arquitetónica. Para o efeito, o investimento em causa nem é muito significativo, uma vez que existem vários programas de candidatura elegíveis a diversos fundos comunitários, alguns com uma fraca taxa de execução. Acresce também que a comparticipação nacional, neste caso, pode ainda ser suportado pelo orçamento nacional, sem custos portanto para os cofres da autarquia de Gaia. Porém, mesmo que o município não queira assumir essa candidatura e a junta de freguesia decida não arriscar por agora grandes intervenções no Espaço, com algumas pequenas obras de reabilitação, de custos perfeitamente suportáveis por uma fatia da sua dotação orçamental em investimento, é possível prosseguir um programa de atividades mais ambicioso, que vá ao encontro das necessidades das gentes da Beira-Rio e seja capaz de satisfazer os interesses lúdicos e culturais da população flutuante, estrangeira ou nacional.
3. É necessário que o coração do centro histórico de Gaia seja revitalizado pelo pulsar de um povo que ali viva todos os dias, porque um lugar histórico sem habitantes, apenas servido por populações flutuantes ou sazonais, é um local com história mas moribundo! As pessoas, as comunidades, são bens patrimoniais que acrescentam real valor aos lugares! Não é destruindo o passado que se constrói um futuro com memória! Os lugares, as pessoas e as casas têm um espírito, sempre feito de diferenças e de complementaridades. Temos de compreender o espírito dos lugares e transformar essa compreensão num modo de enriquecimento cultural a partir do diálogo produtivo entre o que herdamos e o que criamos de novo, o que inevitavelmente nos conduz à noção da diversidade como um fator de unidade e não de fragmentação. Não podemos apagar do amanhã o que o passado nos legou. Só é possível projetarmo-nos no futuro se o fizermos de forma articulada e positiva, inserindo-nos na alma e na história de cada lugar sem violar o seu caráter. Urge, por isso, que se combata a desertificação do centro histórico, que se animem os seus edifícios e espaços públicos, e que se promova a história que habita nas suas ruas e vielas, preservando o inestimável valor simbólico da nossa memória coletiva e o significado histórico dos lugares.
4. É necessário ter uma perspetiva integradora do património, não apenas os seus aspetos materiais, mas também as características intangíveis dos bens, que se revelam na envolvente física, no contexto histórico, no uso e funcionalidade dos lugares, e o papel fundamental que estes bens desempenham na construção da identidade local. Os vestígios deixados pelas gerações que nos precederam são uma grande e preciosa ajuda para o entendimento do presente e uma extraordinária alavanca para o nosso futuro! É tão óbvia a importância do desenvolvimento de um trabalho de conjugação dos vários bens que o centro histórico de Gaia encerra, de forma a constituir uma unidade coerente e significativa, numa lógica de acréscimo e partilha do conhecimento e de divulgação para o exterior, que só não vê quem não quer ver. A sua simples integração nas “rotas culturais” ou nos “itinerários temáticos” permitiria uma abordagem integrada e sustentada deste património culturalmente rico e único, que deve ser olhado de forma cuidada e transversal através dos vários domínios de todas as artes! É necessário, é urgente, que se redobrem esforços para que estes bens sejam considerados de forma holística, atendendo a todas as suas características, materiais e imateriais. Só assim será possível cumprir cabalmente as obrigações de identificação, proteção, conservação, valorização e transmissão às gerações futuras deste valioso património. A ignorância é a razão que leva à degradação do património cultural dos centros históricos. Esse é um risco que corre o centro histórico de Gaia e ninguém parece querer ver.