Salvador Santos
Gestor Cultural
1. Nada temos contra a rede de parques infantis temáticos que a Câmara Municipal de Gaia se propõe criar no concelho, abrangendo diversas freguesias, a partir de temas que se refletem em figuras icónicas como Pinóquio, Abelha Maia, Bela Adormecida, Tom Sawyer, Peter Pan ou Heidi. Só não percebemos as razões que levam a que o primeiro fixe “morada” no Jardim Soares dos Reis. Aquele emblemático espaço público de Mafamude recorda e homenageia uma figura histórica de Gaia que já por si encerra valores que importa privilegiar, reconhecer e defender: a arte, a criação artística, a cultura! O seu exemplo de dedicação ao trabalho e ao ensino, que foi determinante na afirmação da escultura portuguesa no universo europeu das artes plásticas, é suficientemente forte e marcante para que se dispense qualquer personagem imaginária na requalificação e animação daquele jardim gaiense. Deixemo-nos, pois, de “pinóquices” e reforcemos a identidade histórica do local, com um percurso dedicado à escultura e que afirme a obra de um dos seus maiores génios.
2. O edifício que serviu de habitação e oficina a Soares dos Reis também tem de merecer melhor atenção. Foi lá que o grande escultor esculpiu algumas das suas maiores Obras, como os bustos Marques de Oliveira e Flor Agreste, as estatuetas O Desterrado e A Riqueza, as estátuas de Conde Ferreira e Avelar Brotelo ou o monumento a Afonso Henriques, entre muitas outras. A história que ele encerra é inestimável, mas continua ao abandono. Recorde-se que em abril de 2017 foi celebrado um novo protocolo entre a Universidade do Porto e a Câmara Municipal de Gaia (CMG), tendo em vista a remodelação do edifício e a sua transformação num museu vivo e numa oficina para jovens artistas, sem que até à data se vislumbrem sinais nesse sentido. Entretanto, em abril de 2014, a Direção Geral do Património Cultural (DGPC) havia despachado negativamente um pedido de classificação do imóvel, fundamentando-se no parecer da Direção Regional de Cultura do Norte de que o imóvel não reúne os valores patrimoniais inerentes a uma distinção como valor nacional, face ao seu avançado estado de degradação. Ou seja, o Estado não conserva os bens de sua propriedade e depois invoca essa mesma falta de conservação para não os classificar! Sublinhe-se que na mesma data em que decidiu o arquivamento do processo de pedido de classificação da Casa-Oficina de Soares dos Reis, a DGPC fez transitar a questão para a CMG no sentido de esta ponderar a eventual classificação do imóvel como de interesse municipal numa das categorias legalmente previstas, ficando a aguardar o pronunciamento da autarquia sobre o assunto. Mas sobre isto mantém-se até hoje um silêncio quase sepulcral. Já quanto à recuperação do imóvel, surgiu de novo a vontade da autarquia em fazê-lo, tendo como prazo de execução o ano de 2020. Pelo menos era o que se podia ler no Orçamento e Plano do executivo municipal, tendo o seu presidente manifestado esse propósito em cerimónia pública. Mas mais uma vez a intenção não passou disso mesmo: de intenção inconsequente! E para que se perceba melhor a nossa crítica e indignação, importa dizer que não está em causa “apenas” a recuperação de um edifício arquitetónico do século XIX, mas a reabilitação da memória de um dos nossos maiores génios artísticos de todos os tempos.
3. Vila Nova de Gaia, o terceiro mais populoso concelho deste país laico e republicano à beira-mar plantado, vai ter mais dois templos de culto católico. A autarquia associa-se à Diocese do Porto na construção de um novo templo no Monte da Virgem, concebido pelo arquiteto Otávio Alves, e mantém o propósito de construir uma capela na Afurada projetada por Siza Vieira. No caso do templo a erigir junto ao Hospital Santos Silva, o bispo do Porto veio dizer na rede social Twitter que este “será o segundo maior santuário de Portugal, depois de Fátima, com capacidade para acolher cerca de 2500 peregrinos”. E o autarca gaiense Eduardo Vítor Rodrigues manifestou a sua satisfação por esta parceria com a Igreja, que custará aos cofres da autarquia uma valente pipa de massa. Em defesa deste seu investimento em mais uma infraestrutura destinada ao culto católico, o presidente da Câmara Municipal de Gaia, afirma que este empreendimento irá revitalizar o local, que será também dotado de novo hotel e de um teleférico que ligará a freguesia de Oliveira do Douro (Arcos do Sardão) àquele… santuário. No caso da capela projetada por Siza Vieira para a Afurada, que deverá custar a “módica” quantia de 1 milhão de euros, a autarquia prevê que a sua construção arranque ainda este ano (?!…). Ou seja, a muito breve prazo. Mas isso não impediu que o Município tivesse despachado recentemente um apoio de 120 mil euros para a reabilitação da igreja velha daquela freguesia. Perante isto, ao ouvirmos que é necessário apostar no património religioso em Gaia, oferece-nos dizer: Valha-nos Deus!…
4. O Espaço Zé da Micha, entalado entre o Convento Corpus Christi e as traseiras do renovado Mercado da Beira-Rio, continua envergonhadamente abandonado à sua sorte pelos poderes públicos locais. O que era suposto ser um espaço multidesportivo e de lazer, com uma forte componente social e cultural, mantém-se completamente subaproveitado, sem um pensamento, uma ideia, que dê corpo a um projeto digno da riqueza histórica que aquela zona da cidade encerra. Voltaremos muito em breve ao assunto, na esperança de poder contribuir para que esta ferida aberta no coração do centro histórico seja rapidamente sarada.