Após completar um ano desde o início da guerra na Ucrânia, estivemos à conversa com os organizadores e participantes numa ação humanitária que resgatou, logo na segunda semana do conflito, 23 mulheres e crianças ucranianas, e levaram para a Polónia bens e medicamentos.
Ao telefone, conversamos com duas das refugiadas ucranianas que, entretanto, já se encontram na Ucrânia.
Entre sorrisos e lágrimas sentimos uma ligação muito especial entre todos e uma gratidão para a vida, das refugiadas, quer as que já voltaram para a Ucrânia, quer as que já refizeram a sua vida em Portugal.
A invasão da Rússia à Ucrânia terá já provocado mais de 300.000 mortos e dezenas de milhares de feridos, muitos com ferimentos graves permanentes e mais de 8 milhões de refugiados.
Quisemos por isso saber, com quem viveu e vive de perto este drama, quais as expetativas e as mudanças nas suas vidas, bem como recordar um momento de afirmação da solidariedade portuguesa para com o maior drama deste século, na Europa.
O ex-deputado Barcelense, Manuel Mota, que posteriormente esteve ainda num Centro de Apoio Humanitário e Logístico, na fronteira da Polónia com a Ucrânia, tendo visitado Kiev, nesse âmbito, em Abril do ano passado, coordenou a iniciativa e começou por recordar que “a disponibilidade de todos foi imediata e não fazíamos ideia do que íamos encontrar”, uma vez que saíram de Portugal, logo na semana seguinte ao inicio do conflito, numa fase em que, a cada dia que passava, os relatos do terreno eram mais alarmantes.
Na origem da iniciativa esteve a ideia da jovem Joana Ramos e de uma amiga, que queriam ajudar este povo em sofrimento e que contou, de imediato, com o apoio dos pais, Rui Ramos e Isabel Lourenço.
Fernando Castro, outro dos voluntários, recordou o telefonema, à hora de almoço, de domingo, dia 13 de Março de 2022, em que lhe perguntaram se estaria disponível para ir à Polónia resgatar refugiados e do olhar de surpresa da esposa e dos filhos perante a necessidade, imediata, de partir. “Foi tudo muito rápido, mas sem hesitações”.
Olga e a filha Zhenya foram resgatas pelo grupo, em Varsóvia. Olga recorda que o seu “apartamento, em Gostomel – perto de Kiev, foi danificado por granadas. Uma família de militares mora lá agora. Eu tive de deixar de trabalhar no Liceu de Gostomel. Era professora. Não consegui salvar os meus equipamentos e coisas de Gostomel. A minha filha e eu ficamos apenas com duas mochilas nas quais havia documentos”.
Manuel Mota recorda depois que a Olga “é um caso de análise sobre o que de mais perverso existe neste conflito, já que, como muitos outros ucranianos, tem família russa…”. A este respeito, Olga refere que “o pai e a mãe são russos, mas que vivem na Ucrânia há mais de 20 anos e eu própria tenho dupla nacionalidade. Cortei o contacto com todos os meus amigos da Rússia. Não compreendo, nem aceito, os russos que apoiam esta guerra.”
Olga está imensamente agradecida ao grupo que a resgatou, afirmando que “vocês apareceram na minha vida e da minha filha como anjos da guarda, no exato momento em que eu já havia começado a desistir e não sabia para onde seguir. Estou-vos eternamente grata e nunca vos esquecerei.”
Também Ruslana e Yulia agradecem profundamente a ajuda vital que o grupo lhes deu, assim como aos seus filhos Rostyslav e Verónica. Ambas voltaram, entretanto, para a Ucrânia e já se encontram a trabalhar, com as crianças a frequentar a escola. Esperam agora um fim rápido do conflito, para estabilizarem as suas vidas e depois poderem “voltar a Portugal, para agradecer pessoalmente a forma maravilhosa como foram tratadas por este grupo”.
Tetiana e Sofia, que também vieram para Portugal nesta ação, viajaram depois para Portimão, com um casal de ingleses, Russell e Lisa, que, entretanto, se haviam juntado ao grupo português, ainda em território nacional. Levaram-nas então para Portimão, onde tinham um familiar, mas acabaram por não se ao contexto que as recebeu, e voltaram para Barcelos, de onde partiu a iniciativa, tendo num restaurante, em Pedra Furada. Tetiana é advogada e mal a situação em Kiev acalmou, voltou de imediato para a Ucrânia. Fez questão de agradecer a todo o grupo e em particular a Manuel Mota. “Não sei o que vai acontecer connosco amanhã, mas você estará sempre nos nossos corações. Sou-vos grata por tudo o que fizeram por nós. Gostaríamos muito de os voltar a ver na Ucrânia e de poder voltar a Portugal, onde as pessoas são sinceras. Como advogada estou a ajudar pessoas realojadas vindas das zonas onde a guerra continua. E esperamos, todos os dias, pela paz e pela reconstrução do nosso país.”
Os olhos de Manuel, Fernando e Andreiy lacrimejam e a emoção toma conta de todos. Andreiy é ucraniano, mas também fez parte do grupo, que percorreu mais de 7.000 quilómetros para ajudar o seu povo. Andreiy contou-nos a história de uma senhora amiga a quem disseram para vir para Portugal, mas que dizia sentir-se relativamente segura na Ucrânia. “Pouco tempo depois, um roquete atingiu a sua casa e tanto ela como a filha menor, morreram.” Andreiy continua emocionado, porque a esposa e o filho mais novo, de 12 anos, vão voltar, este mês, para Lviv, na Ucrânia…
Manuel Mota recordou depois a dolorosa sensação de estar “num país em guerra e em zonas aparentemente pacíficas, mas onde, passado algumas horas, surgia a informação de que tinha caído um míssil”. Explicou depois a intensidade emocional de “visitar as zonas habitacionais de Yrpin, nos arredores de Kiev, completamente destruídas e acompanhar as instituições que continuam a ajudar os idosos que, por limitações de saúde, permaneceram sempre em suas casas, e falar com alguns deles, que tinham os corpos de familiares no jardim, à espera de que o médico legista pudesse levar os corpos para a morgue, que se encontrava lotada há várias semanas”.
Fernando Castro, residente em Vila Nova de Gaia, recorda “os três dias de viajem, sem dormir ou sem tomar banho, que terminaram num pavilhão desportivo, em Chelm, na fronteira da Polónia com a Ucrânia, onde o grupo entregou bens e medicamentos e foi confrontado com mais de 500 refugiados, entre mulheres e crianças, a dormir”. Um cenário aterrador, que marcou particularmente Fernando, Manuel e Stepan, já que o restante grupo tinha voltado para Varsóvia durante a noite.
Joana, que por razões de saúde, não pode acompanhar o grupo, recorda a preocupação permanente que tinha em relação à viagem e á iniciativa, já que “os relatos das organizações no terreno eram muito preocupantes”.
No encontro sente-se a enorme esperança de todos, de que a guerra acabe o mais rápido possível. E ficará para sempre marcada a coragem dos muitos portugueses, que do conforto de suas casas e das suas famílias, arriscaram as suas vidas para ajudar um povo em sofrimento. A Ucrânia tem, neste momento, mais de 100.000 órfãos e um rasto de morte e destruição que não cessa de aumentar.
Unidos por uma experiência de profundo sofrimento, mas também de grande esperança, todos eles continuam a comunicar uns com os outros, ficando a sensação de que são sentimentos para a vida, deste grupo.
Durante algumas horas tivemos o privilégio de partilhar estas histórias de vida, com pessoas extraordinárias. Num mundo cada vez mais individualista, são estes exemplos de solidariedade que alimentam a nossa esperança num mundo melhor.
O nosso obrigado ao Manuel, ao Fernando, ao Andreiy, à Joana, à Isabel e ao Rui, mas também a todos os que em Portugal e no Mundo, de forma voluntária, ajudam os que necessitam.
Enquanto houver estrada pra andar…
“a disponibilidade de todos foi imediata e não fazíamos ideia do que íamos encontrar”
Manuel Mota
“ERA PROFESSORA. NÃO CONSEGUI SALVAR OS MEUS EQUIPAMENTOS E COISAS DE GOSTOMEL. A MINHA FILHA E EU FICAMOS APENAS COM DUAS MOCHILAS NAS QUAIS HAVIA DOCUMENTOS”
Olga
“CORTEI O CONTACTO COM TODOS OS MEUS AMIGOS DA RÚSSIA. NÃO COMPREENDO, NEM ACEITO, OS RUSSOS QUE APOIAM ESTA GUERRA.”
Olga
“COMO ADVOGADA ESTOU A AJUDAR PESSOAS REALOJADAS VINDAS DAS ZONAS ONDE A GUERRA CONTINUA. E ESPERAMOS, TODOS OS DIAS, PELA PAZ E PELA RECONSTRUÇÃO DO NOSSO PAÍS.”
Tetiana
“A intensidade emocional de ajudar os idosos que permaneceram em suas casas, e falar com alguns deles, que tinham os corpos de familiares no jardim, à espera de que o médico legista pudesse levar os corpos para a morgue, que se encontrava lotada há várias semanas”
Manuel Mota